terça-feira, 14 de junho de 2011

A Teologia do Resgate

O presente escrito quer mostrar em três capítulos, a questão do sacrificialismo. No primeiro, tentar-se-á analisar a questão do sofrimento na visão popular e mesmo na pregação eclesial antes do Vat II. Ou seja, como a teologia pré Vat II teve grande influxo na religiosidade popular, aqui o estudo vem apresentado num mesmo bloco. Para este estudo não se usará propriamente uma pesquisa científica, mas coloca-se aquilo que diariamente é experimentado, no trato com as comunidades eclesiais. Por isto, este capítulo poderá ser enriquecido com as colaborações dos colegas. O segundo capítulo tratará, de forma breve, das causas e conseqüências de uma visão viciada do sofrimento. No terceiro capítulo será apresentado um pequeno trabalho bíblico sobre a questão do sofrimento de Jesus, da cruz dos discípulos e da morte como resgate (Mc 10,45b). Sendo que a pesquisa feita para a tese ainda está em fase embrionária, convém dizer que o trabalho teológico sobre o sofrimento e o resgate aqui apresentado, não reflete necessariamente o que será desenvolvido na tese.

Quando aqui se fala de sacrificialismo e sofrimento, não se quer fazer um estudo teológico de todo e qualquer sofrimento. Não se quer trabalhar o sofrimento oriundo de causas da natureza humana, de certas doenças que podem acometer as pessoas, ou mesmo falhas genéticas que já trazem um ser humano ao mundo com deficiência, sem que para tanto tenha havido culpa de certas pessoas. Neste trabalho, se tem em mente o sofrimento provocado pela maldade humana e mesmo a postura das pessoas diante do sofrimento, seja ele provocado, ou espontâneo, como no caso da cruz de Jesus e dos discípulos, que, segundo certa visão que aqui se quer provar, não é fruto de um fatalismo histórico, mas sim, fruto das estruturas sociais, políticas, econômicas e religiosas.


I - O SOFRIMENTO ANTES DO VAT II E NA RELIGIOSIDADE POPULAR

1 - Na realidade popular

Muitas vezes, na religiosidade popular, e até certo ponto, na pregação oficial da Igreja, principalmente antes do Vat.II, está bem presente a idéia do sacrifício, num sentido masoquista, ou seja, julga-se bom castigar o corpo. O castigo do corpo é visto de maneira mítica, como maneira de domar o demônio que tenta os sentidos, ou domar as próprias paixões. O sofrimento causado para si próprio parece ter valor redentor.

Certa mãe de família sulista (agricultora) assumiu um compromisso de, na safra da uva não comer um único fruto para assim atrair as bênçãos de Deus sobre seus filhos. Outra pessoa fazia constantes promessas de jejuns. Geralmente, uma vez por mês se comprometia a jejuar desde o almoço de sábado até domingo de noite. Em procissões populares, muitas pessoas caminham descalças, esfolando seus pés até sangrarem. Alguns fanáticos chegaram a se crucificar nas sextas-feiras santas. Uma mãe foi se lamentar com um sacerdote, dizendo que o marido bebia, o filho se drogara e a filha, ainda menor engravidara. O sacerdote respondeu: "Calma filha, esta é a cruz que Deus reservou para você. Aceite-a. Este mundo é mesmo um vale de lágrimas". Um sacerdote ensinava, no Estado do Paraná, que, ao sofrer uma contrariedade, deve-se louvar a Deus, pois um Bendito seja Deus nas adversidades, vale mais que mil Benditos quando tudo vai bem. O líder nacional da Assembléia de Deus, Pastor Bezerra da Costa declarou: "Cada brasileiro que se converte à Assembléia de Deus é um sem-terra a menos, pois não queremos a terra, mas o céu" (Jornal do Brasil, 30.09.97, p.9). Uma pessoa beata, numa roda de amigos dizia: "Por que Deus não me deixou morrer quando eu ainda era criança? Estaria agora com ele." Casos como estes são conhecidos de todos. Tudo isto leva a questionar: que Deus é cultuado pelos cristãos, que gosta tanto do seu sofrer?

Parece que o sofrimento corporal, seja ele oriundo de privações, seja de auto-flagelações, ou de injustiças sofridas, tem um valor diante de Deus, ou ainda, o pecador se sente tão inútil, asqueroso, e , para aplacar a ira de Deus, precisa se mutilar. Deus, um ser superior, todo santo, lá das alturas, não se apieda do ser humano, pois este lhe causa repugnância. Somente quando este se humilha, se fere ou se priva, consegue atrair o olhar do Todo-Poderoso e obter misericórdia.

Esta visão, no mínimo, traz duas deficiências:

1) O desprezo do corpo, como lugar de pecado, de concupiscência. O corpo deve ser castigado para ser agradável a Deus. Com tais idéias, passa-se a não lutar contra o sofrimento, a não valorizar a vida.
2) A imagem de um Deus tirano que quer o sofrimento de sua criatura. Um Deus que não entende as limitações do ser humano e por isto fica distante. Só diante do sofrimento livremente assumido pelo penitente, Deus se comove. É um Deus sádico. Este Deus criou o mundo para o homem e a mulher, mas se sente ofendido quando eles usam daquilo que criou. Esta visão legitima os tiranos e opressores de todos os tempos.


2 - Teologia pré-Vat II e popular do sofrimento

Jesus é o modelo máximo do sofrimento. Sofrendo ele enfrentou este mundo como o Vale de Lágrimas para redimir a todos os que vivem neste mesmo vale. Na piedade popular, muitas vezes, se lê a vida de Jesus e de Maria, pela chave do sofrimento. Este sofrimento inicia no nascimento na gruta e culmina na cruz. Maria é a mulher das dores e Jesus o homem das dores. A dor e a morte de Jesus, segundo esta compreensão, estavam pre-escritas no Antigo Testamento (Is 52,13-53,12). Jesus veio para padecer a morte de cruz que para ele estava preparada. Desde toda eternidade o Pai havia reservado morte sangrenta para seu filho.

Quando a Igreja canonizava seus santos, ou quando queria ressaltar as virtudes de seus eleitos, geralmente o sofrimento era a página preferida a destacar. Aqueles que sofreram tribulações em sua carne, a dilaceração, eram considerados os maiores heróis. E quando a dor chegou ao máximo, isto é, quando o santo derramou seu sangue, foi brutalmente assassinado, então, como culto à dor, ele merecia maior louvor. Canoniza-se, não tanto pelos valores que este santo viveu e defendeu até com a doação de sua vida, mas porque suportou a dor.

Como meio de disciplinar seus fiéis, recorria-se muito ao sofrimento, como jejuns, abstinência de carne, mortificações, etc. Para os casais cristãos até o prazer sexual era visto como indigno, tanto assim que a igreja chegou a recomendar a seus fiéis o sexo para a procriação, mas que não tivesse o prazer. Deviam fazê-lo rapidamente, sem carinho ou excitação. O casamento, antes de ser vocação, era visto como remédio contra a fornicação. Desta forma, o jejum, a abstinência e as mortificações perdiam seu verdadeiro sentido bíblico de lembrar que tudo é criatura e que só Deus é absoluto, ou lembrar que tudo vem de Deus e que deve-se solidarizar com os irmãos e as irmãs que se vêem privados de tudo. As mortificações nada mais eram do que a busca da dor.

Na vida religiosa, que era vista como fuga do mundo, o sofrimento era procurado como remédio para realizar a fuga com êxito. Assim, além dos jejuns e outros tipos de mortificações, havia, em muitas ordens e congregações, o flagelo (chicote para se auto-flagelar) e o cilício (espécie de cinto com pontas usado por baixo da roupa para ferir a pele). São Francisco de Assis se atirou na roseira para acalmar as paixões.

Casos como estes de penalizações do próprio corpo são comuns ainda hoje na mentalidade popular e também na teologia oficial.

Na piedade popular, falam alto as imagens e ícones que apresentam um Jesus desfigurado, sangrando e desfalecido. Maria com o filho morto em seus braços é a imagem preferida. Nas igrejas, há bem mais freqüência nas cerimônias de sexta-feira santa do que na cerimônia da ressurreição. Simplesmente a dor fala mais alto.


II - CAUSAS E CONSEQÜÊNCIAS DE UMA INTERPRETAÇÃO ERRÔNEA DO SOFRIMENTO


1 - Dimensão antropológica e psicológica da dor

Talvez, pelo fato de a dor ser uma companheira inseparável de homens e mulheres, talvez, dada à situação de miséria em que se encontra grande parte do povo, ela passou a ser assimilada como um arquétipo e até a ser interpretada como coisas valorosa.

Era comum, no passado, diante da carência de recursos, as pessoas enfrentarem a dor com valentia. Uma mãe orientava seu filho menor a oferecer a terrível dor enfrentada na cadeira do dentista, pelas almas do purgatório ou para a conversão dos pecadores. Os trabalhos médicos, sem anestesia eram encarados como oferenda pelos pecadores, etc. A dor sofrida pela esposa sob o jugo de marido cruel, alcoólatra, infiel, ou vice-versa, tinha seu valor salvífico para a sua salvação, bem como a do marido. Encontrando-se impotente diante dos sofrimentos, divinizava-se a dor.


2 - Conseqüências

O amor ao sofrimento leva o ser humano a desvalorizar a vida, o maior dom de Deus. E, o que é mais grave, torna o homem e a mulher passivos diante do sofrimento. Assimilando tal teoria, o corpo sempre será algo baixo, vergonhoso que deve ser purificado. As potencialidades humanas não podem ser vividas plenamente, pois a vida verdadeira não é esta que se vive no corpo. A resistência heróica diante da dor criava um caráter firme nas pessoas, mas ao mesmo tempo, incutia uma valorização da dor como um valor em si, deformando assim a imagem de ser humano e também de Deus. Tornava o ser humano passivo diante dos males da história. O único interesse é o céu.

Por outro lado também se aprende a sacrificar o irmão e a irmã. Já que Deus quer o sofrimento, alguém tem de ser sacrificado. Nada mal sacrificar a massa do povo para que o estado possa ostentar luxo, ou ainda mais, para que uma elite possa ter excessos.

Começa-se, também a julgar os sofredores como culpados (Jó). Desta forma, o sofredor é culpado da dor que o assola. Muitas pessoas indagam: "O que fiz para merecer tudo isto?"


III - A TEOLOGIA DO SOFRIMENTO

Certo fundamentalismo religioso gosta de explicar o sofrimento de Jesus como uma atitude passiva dele diante da maldade humana, ou então, como um fatalismo histórico. É errada a visão que explica a dor de Jesus como querida pelo Pai, ou por ele mesmo. Jesus se preocupa com sua vida, foge da perseguição (Jo 7) e diante de sua morte iminente, clama ao Pai (Mc 14,36; 15,34). A dor de Jesus não foi querida por Deus, mas foi o preço que Jesus pagou por seu projeto a favor da vida, ou seja, o Reino. Isto se torna evidente no texto abaixo:

"E chamando-os a si, Jesus disse-lhes: ‘Sabeis que os que parecem governar as nações se apoderam delas, e os seus grandes exercem autoridade sobre elas. Não é assim entre vós, mas o que deseja chegar a ser grande entre vós, será o servo de vós, e quem que deseja, entre vós, ser o primeiro, será de todos escravo. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, senão para servir e dar a vida em resgate por muitos" (Mc 10,42-45).

Neste texto, evidencia-se que Jesus não busca o sofrimento, mas sim, alterar a lógica dominante, justamente para acabar com o sofrimento injusto na comunidade. Ora, invertendo a lógica dominante pelo servir, o sofrimento virá como conseqüência. Servir, como norma de vida, quebra a lógica dos senhores e, ao mesmo tempo mexe com seus privilégios, pois nova comunidade ensaiada por Jesus, deslegitima a ordem vigente. Isto significa entrar em conflito com uma sociedade existente. Quem tem tal projeto de vida e de sociedade, necessariamente paga um preço, isto se traduz em sofrimento e sacrifício. Mas o que Jesus quer é que seu projeto de servir prevaleça, não o sofrimento em si. Quem se comprometeu tanto com a vida Mc 2-3; Lc 4,14-16; Jo 10,10 certamente não amava o sofrimento, nem seu e menos ainda o do povo. Ele queria vida para o povo. Aqueles que negavam a vida do povo viram nele uma ameaça. Eliminá-lo para se livrar dele era uma necessidade para quem se sentia ameaçado. Logo, sua paixão, morte de cruz foram o preço de seu projeto a favor da vida. Quem quis o sofrimento de Jesus foram os arautos do anti-reino. Jesus queria o Reino de Deus, o Pai queria a fidelidade de Jesus ao Reino. Diante disto, os líderes julgaram que a única saída seria eliminá-lo (Mc 3,6; Jo 11,49). Jesus não procurou o sofrimento e a morte, mas para ser fiel ao plano do Pai, a favor da vida, aceitou-os como preço.


1 - Base evangélica para a paixão e morte de Jesus

No evangelho de Marcos, já nos primeiros capítulos, percebe-se a ação de Jesus a favor dos pobres, doentes, deficientes e pecadores (Mc 1,21-3,6), para quem a religião judaica havia se tornado um verdadeiro peso. Expulsa demônios (1,22ss), cura doentes (1,29ss), desafia o sábado (1,21ss; 2,23ss; 3,1ss) e outros costumes judaicos. Também em Lc 4,14ss se constata a ação de Jesus a favor da vida dos pobres e miseráveis. Tudo isto são gestos a favor do povo e também desperta o ódio dos chefes, que começam a planejar a sua morte

"Depois de se retirarem, os fariseus deliberaram com os herodianos, contra Jesus, acerca dos meios de fazê-lo perecer" (Mc 3,6).

O mesmo percebemos no evangelho de João. Depois da ação de Jesus a favor do povo, os chefes querem condená-lo, pois vêem nele alguém perigoso.

"Um dentre eles, Caifás, que era sumo sacerdote naquele ano, disse; ‘Vós não compreendeis nada, e nem mesmo refletis que é do nosso interesse que um só homem morra pelo povo e que não pereça uma nação inteira" (Jo 11,49-50).

Nos dois casos, percebe-se que a morte é imposta a Jesus pelas lideranças porque estas se sentiam ameaçadas ou desafiadas. Seu programa político, econômico e religioso corria o risco de se esvaziar. Jesus, de fato, esvaziava o templo (Mc 2,5; Jo 2,13ss), fonte de privilégios de uma elite, mas desgraça do povo. Diante de um provocador, as autoridades respondem com a pena de morte.

2 - Carregar a cruz, um gesto político

Nesta perspectiva acima estudada, que sentido têm os anúncios da paixão e morte que Jesus faz (Mc 8,31; 9,30-31; 10,32-34) e o pedido que dirige a seus discípulos de carregarem a cruz (Mc 8,34ss)? Estaria, o evangelista cantando loas ao sofrimento de Jesus e dos discípulos? O que significava para Jesus ir a Jerusalém (centro do poder) e assumir a cruz? O que significa para o discípulo renunciar a si, tomar a cruz e seguir o mestre?

Antes de tudo convém lembrar o que foi dito acima: o sofrimento e a morte de Jesus foram o preço pago por ele pela sua fidelidade ao Pai e aos irmãos. Jesus queria vida para todos (Jo 10,10). Isto lhe valeu a cruz (Mc 3,6). Na realidade, as autoridades da época, religiosas e políticas, haviam alijado o povo. Jesus, em toda sua prática busca este povo excluído (Mc 2,1-3,6, etc.). Isto lhe valeu o ódio do poder. Logo, ir a Jerusalém, tomar a cruz, é sinônimo de enfrentar o poder que destrói a vida.

Assim, para o cristão assumir a cruz não significa aceitar passivamente os sofrimentos que são frutos da injustiça e da maldade. A cruz não é gesto passivo. É antes um confronto com as forças que destroem a vida, principalmente dos mais fracos. A cruz do cristão é assumir o compromisso com a vida, com o mundo, lutando contra a morte e o sofrimento. Então, carregar a cruz é um gesto político, ativo de quem não aceita o anti-reino instaurado na sociedade, mas que quer fazer o projeto de Deus prevalecer.

Quando o homem e a mulher tomam sua cruz, ou seja, se comprometem com a justiça, com a vida e com o projeto de Deus, como prêmio recebem o sofrimento. Não porque Deus quer que seus filhos fiéis sofram, mas porque este lhe é imposto pelos homens, pela sociedade e pelos detentores do poder. Este sofrimento, fruto de uma opção de vida, tem valor. Inclusive a morte de tantos mártires, tem sentido. Não pela dor e a morte em si, mas porque sua fidelidade em defender o projeto de Deus foi tão radical, a ponto de dar a vida. A doação da vida, neste caso, é justamente para que a vida prevaleça. Alguém amou tanto a vida que foi capaz de aceitar a morte para que os outros possam viver.


3 - Dar a vida em resgate por muitos

Por que a comunidade cristã interpretou a morte de Jesus como morte vicária? Teria, o sofrimento de Jesus, seu sacrifício, função expiatória? Mc 10,45b já recebeu muitas interpretações. O texto se refere a Is 53,10-12 (Servo Sofredor). Assim, o serviço de Jesus: entregar a vida é visto como gesto expiatório pelos outros.


a) Visão de Santo Anselmo

Santo Anselmo, no final do século X interpretava o texto assim: Deus, a exemplo dos reis, está distante e é um juiz terrível. A salvação é quase impossível. Assim veio Jesus e realizou a salvação pela humanidade:

"Segundo esta interpretação, a obediência de Jesus, materializada no sacrifício da cruz, dá origem - em virtude da dignidade infinita (por ser divina) de sua pessoa - a uma satisfação infinita frente a um Deus ofendido pelo pecado".

Como o que ofende (ser humano) não pode satisfazer a ofensa, pois o ofendido é Deus, deve Jesus, Deus encarnado, fazê-lo por ele. Para reparar a ofensa feita a Deus, só a morte de seu filho é suficiente. O pecado é visto como ofensa a Deus e o perdão, como devolução da honra ofendida e mais algum acréscimo para compensar o ultraje. O ser humano está fadado ao castigo, mas como Deus quer a salvação, logo a satisfação é necessária.

"Desta maneira, Jesus Cristo, Homem Deus é o perfeito satisfator das ofensas que os homens de todos os tempos fizeram contra a honra de Deus. Sua morte na cruz é o ponto-chave do processo de satisfação".

No entanto, esta visão é viciada por uma época monárquica, onde o povo estava abandonado à sua sorte. E o relacionamento humano-Deus era medido nos mesmos moldes. Só a morte de Jesus conta para o resgate, sua vida é esquecida, a encarnação é obnubilada ou se dá em função da paixão. A ressurreição é apenas a confirmação da sua divindade, mas não tem valor teológico, pois só a morte é que conta. O Pai está afastado da obra redentora. É o obstáculo da salvação. Ele é sanguinário vingativo. Não é o Pai do filho pródigo de Lc 15,11-32.

A visão anselmiana vê o pecado como ofensa que atinge diretamente a Deus, sem passar pela mediação humana. Este pecado nada tem a ver com a vida (Mt 25,31-46). Anselmo pensa em satisfazer a honra de Deus, mas Deus nada precisa. Não é a ele que o pecador precisa satisfazer, mas sim, ao seu projeto sobre o humano e sobre a história.

Anselmo não liga a morte de Jesus com sua vida. Na realidade, a morte foi o coroamento de uma vida-doação, semente do Reino.

"Jesus assumiu a cruz não por obediência a um fatalismo prévio a sua decisão livre, mas - precisamente - como conseqüência da livre decisão de selar a vida de obediência e fidelidade ao Pai e seu Reinado" .

É a vida e a morte de Jesus que realizam a salvação. A morte é o centro, mas não exclusivo.


b) Visão segundo biblistas atuais

Os biblistas do século XX não têm a perspectiva monárquica de Sto. Anselmo. Nem se pensa mais que o Pai fosse um Deus sádico que quer o sangue do Filho para aplacar sua ira contra os seres humanos. Hoje busca-se entender a compreensão que tinham os teólogos do NT que interpretaram a morte de Jesus como resgate.

l.u,tron significa pagar para resgatar um escravo ou prisioneiro de guerra. Traduz também o lawg "Go’el". Aquele que, por dever de sangue, devia resgatar um parente que caísse na escravidão ou perdesse seus bens (Rt). Isto implicava pagamento em dinheiro. Alguém o fazia em lugar de um caído que não o podia fazer por si. Assim Jesus realiza a ação de Deus de salvar o povo. Jesus se fez pecado (2Cor 5,21) para pagar o pecado da história humana.

"lu,tron dá um conceito vétero-testamentário de direito familiar, como Go’el = parente resgatador.

O termo lu,tron "resgate" na LXX traduz o hebraico rpk "Kofer". Implica a substituição, penhor, cujo valor vale para cobrir uma culpa. Também corresponde ao hebraico "Asam", que equivale a sacrifício pela culpa. Lembra, no AT o resgate feito do filho primogênito que era oferecido a Deus e resgatado por um animal. No judaísmo tardio, como em 2Mc aparece a idéia da morte vicária dos justos a favor da nação. Com esta visão, supões os biblistas que a compreensão da morte como resgate teria um fundo metafórico. Jesus teria servido a Deus com seu morrer. O Pai pede o sacrifício do Filho. Tudo isto, no entanto, reflete a cosmovisão de uma época e portanto, pode ser desmitificado.

Mc 10,45b é provavelmente um enunciado teológico de maior importância no NT. Segundo Rudolf Bultmann, este versículo reflete teologia pós-pascal elaborada com critérios semitas que refletem todos os conceitos vistos acima, enquanto, 1Tm 2,6 expressa este mesmo princípio numa visão grega.


"Uma conhecida reformulação dogmática está em Mc 10,45, onde se pode perceber a forma primitiva de Lc 22,27"

Segundo Bultmann, a comunidade primitiva trabalhou os conceitos teológicos, tanto assim que, os diferentes locais, desenvolveram a teologia de forma diferente. Há uma mudança de perspectiva entre Marcos e Lucas. O mesmo se percebe ao analisar os discursos cristológicos nos Atos dos Apóstolos. Lá nunca aparece a idéia de que Jesus morreu por nós. Sendo assim, Lucas não teria conhecido a teologia do resgate, ou seus discursos em At refletem uma teologia mais arcaica que ainda não tinha chegado ao estado de evolução como Mc 10,45.

"A indicação ao modelo de Jesus é reformulada em Mc 10,45 no sentido de Credo desenvolvido".

Logo, a teologia do resgate é teologia desenvolvida no contexto pós-pascal, quando a comunidade cristã interpreta a morte de Jesus, provavelmente à luz de Is 52,13-53,12. Esta releitura fora feita na comunidade marcana, enquanto Lucas 22,26s não conhece esta teologia.

"Ora, a transformação do v. 45 em Lc 22,26s não usou estas palavras, não obstante em Lucas, diante da morte de Jesus, elas teriam sido oportunas. Isto significa que Lucas não as conheceu, elas são um acréscimo do redator".

A sentença sobre o Filho do Homem reflete a compreensão da morte de Jesus transmitida na tradição da ceia (cf Mc 14,22-25) que se baseia na cristologia que reconhece a doação da vida de Jesus como substituição (Gl 1,4; 2,20; Ef 5,2.25) e sua aceitação no horizonte do seguimento de Jesus (cf 1Pd 2,21; 1Jo 3,16) que também é provável para a recepção marcana em Mc 8,27-10,52.

"Com o termo ‘resgate’ se quer afirmar o fato que Jesus compra a libertação de muitos do pecado, o qual em concreto, segundo o pensamento judaico, se verificará no juízo final computado por Deus, porque tal libertação subtrai ‘os muitos’ da condenação da danação".

O substantivo ‘resgate’ no logion de Mc 10,45 implica também a idéia de uma ação ou uma função vicária, feita por Jesus em lugar, ou no posto de muitos. De fato, Jesus, oferecendo-se a si mesmo à morte, comprou o que não podiam fazer os ‘muitos’ e que precisavam de um outro. O logion de Mc 10,45 compreende uma condensação soteriológica que abraça a missão inteira de Jesus, a qual é proclamada querigma cristão: a vida, a morte e a ressurreição de Jesus operam a salvação (libertação) dos homens comunicando-lhes sua vida.

Na atual formulação evangélica a estreita ligação do logion sobre o resgate com o ensino precedente sobre o servir, reportada aos apóstolos (Mc 10,41-44), revela que o logionnão é considerado na sua autonomia e independência, mas no valor exemplar que reveste o inteiro agir de Jesus, qualificado como serviço por aqueles que são responsáveis, isto é, por aqueles que ocupam os primeiros postos na comunidade.

"Bem observado o logion de Jesus [Mc 10,45] e o contexto onde é situado se percebe que aparece como uma reflexão elaborada e um repensar cristológico. De fato, no atual contexto marcano isto constitui-se uma extensão da idéia de serviço aplicada à vida inteira de Jesus; Além disso este dito serve de solene conclusão à coleção catequética que caracteriza o capítulo 10 de Marcos; enfim o logion é formulado com uma linguagem estabilizada".

Se resgate vem ligado a toda a vida de Jesus e não apenas à sua morte, então deve-se olhar em primeiro lugar para a situação política, econômica e religiosa dos tempos do Novo Testamento. Reinava um projeto de morte. Os deficientes não tinham participação no templo (2Sm 5,8), os ignorantes não podiam observar a Lei e por isto eram considerados malditos (Jo 7,49), os pecadores não tinham acesso a Deus (Lc 15,1-2; 18,9-14, etc.).

Numa primeira leitura, um tanto simplista, não levando em conta o contexto teológico do NT, pode levar a uma compreensão mágica de resgate, ou seja, poderia-se crer que de fato Jesus precisava morrer para aplacar a ira do Pai, ou ainda que seu sofrer estava preestabelecido, etc. Mas, olhando o contexto (cf. parágrafo anterior), onde se deixa entrever que o resgate vem ligado a toda vida de Jesus, e que ele, desde o início de sua vida pública se choca com o projeto de morte, então pode-se ver a morte de Jesus em outro sentido.

A Encarnação do Verbo (Jo 1,1. 4-5. 12) trouxe um novo projeto de vida. Ele veio para dar a vida (Jo 10,10). Ele era a vida (Jo 14,6). Mc 2 e 3, bem como Lc 4,14ss mostram Jesus sempre comprometido com a vida, e Mc 3,6, bem como Jo 11,49-50 mostram que justamente devido a seu compromisso com a vida, ele foi destinado a morrer.

Assim, toda a vida de Jesus, seu projeto de vida, sua fidelidade ao Pai e aos irmãos e irmãs, enfim, o projeto de Reino é salvífico. A morte é a doação total para este projeto. Pela ressurreição o Pai confirmou definitivamente o Reino anunciado, instaurado e vivido por Jesus e que continua a ser ensaiado e vivido, ainda que de forma incipiente, pela igreja. Esta vida não pode ser resumida só à vida terrena, nem só à vida eterna. Ela é vida que começa aqui e culmina na eternidade. Por isto, a obra de Jesus é resgate da vida, na terra e no céu. O evangelho de João salienta bastante a vida de Jesus como salvação (Jo 3,16.18.36, etc.).

Talvez em contexto paulino, a noção de resgate assumiu exclusividade escatológica, mas na sua expressão no evangelho de Marcos, parece que se possa entender esta libertação não apenas a nível escatológico, mas também como uma libertação histórica, pois o Reino não é entendido, segundo os evangelhos, como uma realidade apenas do além.

Resta ainda uma questão: Se a morte de Jesus não é uma salvação automática, ou até mágica, nem é o pagamento a Deus, nem ao demônio, poderia esta salvação ter sido realizada por outra pessoa, além de Jesus? Definitivamente não. Outra pessoa também poderia denunciar o projeto de morte dos senhores do mundo e se comprometer com a vida, mas só Deus é a fonte da vida, só ele podia apontar definitivamente o caminho da vida. Sua encarnação foi justamente a fonte de vida que vem a este mundo para dar à humanidade a vida definitiva.


CONCLUSÃO

O sofrimento humano, a dor e a morte que tanto marcam a humanidade e que também marcaram a Jesus, não podem ser vistos como algo positivo, ou algo que tenha valor em si. O ser humano não nasceu para sofrer, nem deve buscar o sofrimento. Deus é o Deus da vida, e Ele quer que a vida prevaleça. O sofrimento e a dor desfiguram a criação. O homem e a mulher não devem só se ocupar com a eternidade em detrimento da vida terrena. D. Pedro Casaldaliga tem um dizer que sintetiza a missão do cristão no mundo: "Não temos compromisso com o céu, mas só com a terra. O céu Deus dá de graça, pelos méritos de Jesus, àqueles que se comprometeram com a terra".

A dor, o sofrimento e a morte adquirem um sentido cristão quando se assume o projeto do Reino e se luta contra os projetos de morte que destroem a vida. O sofrimento que vem como preço de um compromisso com a vida, é um sofrimento abençoado por Deus. Não porque Deus aprecie o sofrimento, mas justamente porque apraz a vida. Tal sofrimento é fecundo e gera vida.

Jesus, como exemplo máximo, assumiu os valores do Reino. O Reino é justamente o lugar da vida. Para tanto deve de pagar um preço. O preço não foi apenas paixão e morte, mas foi a doação de toda sua vida, sua fidelidade ao Pai, sua pregação, sua cosmovisão, etc.

O cristão nunca deve procurar o sofrimento, nem a morte. Deve procurar a vida. Este procurar pode custar dores, sofrimento e até a morte. Esta participação no projeto de Jesus gera a vida, terrena e a eterna.



BIBLIOGRAFIA


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