terça-feira, 17 de maio de 2011

Os riscos da arrogância do Império

Por Leonardo Boff, em seu blog.

Conto-me entre os que se entusiasmaram com a eleição de Barack Obama para Presidente dos EUA, especialmente vindo depois de George Bush Jr., Presidente belicoso, fundamentalista e de pouquíssimas luzes. Este acreditava na iminência do Armagedon bíblico e seguia à risca a ideologia do Destino Manifesto, um texto inventado pela vontade imperial norte-americana, para justificar a guerra contra o México, segundo o qual os EUA seriam o novo povo escolhido por Deus para levar ao mundo os direitos humanos, a liberdade e a democracia. Esta excepcionalidade se traduziu numa histórica arrogância que fazia os EUA se arrogarem o direito de levarem ao mudo inteiro, pela política ou pelas armas, o seu estilo de vida e sua visão de mundo.
Esperava que o novo Presidente não fosse mais refém desta nefasta e forjada eleição divina, pois anunciava em seu programa o multilateralismo e a não hegemonia. Mas tinha lá minhas desconfianças, pois atrás do Yes, we can (“sim, nós podemos”) podia se esconder a velha arrogância. Face à crise econômico-financeira apregoava que os EUA mostraram em sua história que podiam tudo e que iam superar a atual situação. Agora por ocasião do assassinato de Osama bin Laden ordenada por ele (num Estado de direito que separa os poderes, tem o Executivo o poder de mandar matar ou não cabe isso ao Judiciário que manda prender, julgar e punir?) caiu a máscara. Não teve como esconder a arrogância atávica.
O Presidente, de extração humilde, afrodescendente, nascido fora do Continente, primeiramente muçulmano e depois convertido evangélico, disse claramente: “O que aconteceu domingo envia uma mensagem a todo o mundo: quando dizemos que nunca vamos esquecer, estamos falando sério”. Em outras palavras: “Terroristas do mundo inteiro, nós vamos assassinar vocês”. Aqui está revelada, sem meias palavras, toda a arrogância e a atitude imperial de se sobrepor a toda ética.
Isso me faz lembrar uma frase de um teólogo que serviu por 12 anos como assessor da ex-Inquisição em Roma e que veio me prestar solidariedade por ocasião do processo doutrinário que lá sofri. Confessou-me: ”Aprenda da minha experiência: a ex-Inquisição, não esquece nada, não perdoa nada e cobra tudo; prepare-se”. Efetivamente assim foi o que senti. Pior ocorreu com um teólogo moralista, queridíssimo em toda a cristandade, o alemão, Bernhard Hâring, com câncer na garganta a ponto de quase não poder falar. Mesmo assim foi submetido a rigoroso interrogatório na sala escura daquela instância de terror psicológico por causa de algumas afirmações sobre sexualidade. Ao sair confessou: “o interrogatório foi pior do que aquele que sofri com a SS nazista durante a guerra”. O que significa: pouco importa a etiqueta, católico ou nazista, todo sistema autoritário e totalitário obedece à mesma lógica: cobra tudo, não esquece e não perdoa. Assim prometeu Barack Osama e se propõe levar avante o Estado terrorista, criado pelo seu antecessor, mantendo o Ato Patriótico que autoriza a suspensão de certos direitos e a prisão preventiva de suspeitos sem sequer avisar aos familiares, o que configura sequestro. Não sem razão escreveu Johan Galtung, norueguês, o homem da cultura da paz, criador de duas instituições de pesquisa da paz e inventor do método Transcend na mediação dos conflitos (uma espécie de política do ganha-ganha): tais atos aproximam os EUA ao Estado fascista.
O fato é que estamos diante de um Império. Ele é consequência lógica e necessária do presumido excepcionalismo. É um império singular, não baseado na ocupação territorial ou em colônias, mas nas 800 bases militares distribuídas pelo mundo todo, a maioria desnecessária para a segurança americana. Elas estão lá para meter medo e garantir a hegemonia no mundo. Nada disso foi desmontado pelo novo Imperador, nem fechou Guantánamo como prometeu e ainda mais, enviou outros trinta mil soldados ao Afeganistão para uma guerra de antemão perdida.
Podemos discordar da tese básica de Abraham P. Huntington em seu discutido livro O choque de civilizações. Mas nele há observações, dignas de nota, como esta: “a crença na superioridade da cultura ocidental é falsa, imoral e perigosa” (p.395). Mais ainda: “a intervenção ocidental provavelmente constitui a mais perigosa fonte de instabilidade e de um possível conflito global num mundo multicivilizacional” (p.397). Pois as condições para semelhante tragédia estão sendo criadas pelos EUA e pelos seus súcubos europeus.
Uma coisa é o povo norte-americano, bom, engenhoso, trabalhador e até ingênuo que admiramos, outra é o Governo imperial, que não respeita tratados internacionais que vão contra seus interesses e capaz de todo tipo de violência. Mas não há impérios eternos. Chegará o momento em que ele será um número a mais no cemitério dos impérios mortos.

A maldição branca

No dia 1º de janeiro de 2004, a liberdade cumpriu dois séculos de vida no mundo. Ninguém reparou, ou quase ninguém. Poucos dias depois, o país do aniversário, o Haiti, passou a ocupar algum espaço nos meios de comunicação; não pelo aniversário da liberdade universal, mas sim porque ali se desencadeou um banho de sangue que acabou despachando o presidente Aristide.
O Haití foi o primeiro país a abolir a escravatura. No entanto as enciclopédias mais difundidas e quase todos os textos escolares atribuem à Inglaterra essa honra histórica. É verdade que um belo dia o império que havia sido campeão mundial do tráfico negreiro mudou de opinião; mas a abolição britânica ocurreu em 1807, três anos depois da revolução haitiana, e foi tão pouco convincente que em 1832 a Inglaterra teve que voltar a proibir a escravatura.
Nada de novo no aviltamento do Haití. Há séculos que é desprezado e castigado. Thomas Jefferson, prócer da liberdade e proprietário de escravos, advertia que do Haití vinha um mau exemplo; e dizia que era preciso "confinar a peste a essa ilha". O país ouviu-o. Os Estados Unidos demoraram sessenta anos a outorgar reconhecimento diplomático à mais livre das nações. Entretanto, no Brasil, chamava-se haitianismo à desordem e à violência. Os donos dos braços negros salvaram-se do haitianismo até 1888. Nesse ano, o Brasil aboliu a escravatura. Foi o último país do mundo.
O Haití voltou a ser um país invisível, até à próxima carnificina.
Enquanto esteve nas pantalhas e nas páginas, no princípio de 2010, os media transmitiram confusão e violência e confirmaram que os haitianos nasceram para fazer bem o mal e para fazer mal o bem. Desde a revolução para cá, o Haití apenas foi capaz de oferecer tragédias. Era uma colonia próspera e feliz e agora é a nação mais pobre do hemisfério ocidental. As revoluções, concluíram alguns especialistas, conduzem ao abismo. E alguns disseram, e outros sugeriram, que a tendência haitiana ao fratricídio provém da herança selvagem que vem de África. O mandato ancestral. A maldição negra, que empurra para o crime e o caos.
Da maldição branca não se falou.
A revolução francesa aboliu a escravidão, mas Napoleão ressuscitou-a:
- Qual foi o regime mais próspero para as colonias?
- O anterior
- Pois então restabeleça-se
E, para reimplantar a escravidão no Haití, enviou mais de cinquenta navios cheios de soldados. Os negros amotinados venceram a França e conquistaram a independência nacional e a libertação dos escravos. Em 1804, herdaram uma terra arrasada pelas devastadoras plantações de cana de açucar e um país queimado pela guerra feroz. E herdaram "a dívida francesa". A França cobrou caro a humilhação infligida a Napoleão Bonaparte. Acabado de nascer, o Haití teve que comprometer-se a pagar uma indemnização gigantesca, pelo mal que fez ao libertar-se. Essa expiação do pecado da liberdade custou-lhe 150 milhões de francos ouro. O novo país nasceu estrangulado por essa corda atada ao pescoço: uma fortuna que actualmente equivaleria a 21.700 milhões de dólares ou a 44 orçamentos totais do Haití dos nossos dias. Muito mais de um século levou a pagar a dívida, que os juros da usura iam multiplicando. Em 1938 chegou, finalmente, a redenção final. Nessa altura já o Haití pertencia aos bancos dos Estados Unidos.
Em troca dessa maquia a França reconheceu oficialmente a nova nação. Nenhum outro país a reconheceu. O Haití nascera condenado à solidão.
Nem sequer Simón Bolivar a reconheceu, ainda que tudo lhe devesse. Barcos, armas e soldados foram-lhe oferecidos pelo Haití em 1816, quando Bolívar chegou à ilha, derrotado, e pediu apoio e ajuda. O Haití deu-lhe tudo, com a única condição de que libertasse os escravos, uma ideia que até então não lhe tinha ocorrido.
Depois, o senhor triunfou na sua guerra de independência e expressou a sua gratidão enviando a Port-au-Price uma espada de presente. De reconhecimento, nem falar.
Na realidade as colónias espanholas que tinham passado a ser países independentes continuavam a ter escravos mesmo que algumas tivessem, aliás, leis que o proibiam. Bolivar ditou a sua em 1821, mas a realidade não se deu por satisfeita, Trinta anos depois, em 1851, a Colômbia aboliu a escravatura; e a Venezuela em 1854.
Em 1915, os marines desembarcaram no Haití. Ficaram dezanove anos. A primeira coisa que fizeram foi ocupar a alfândega e a repartição de cobrança de impostos. O exército de ocupação reteve o salário do presidente haitiano até este se resignar a assinar a liquidação do Banco da Nação, que se converteu em sucursal do City Bank de Nova Iorque. O presidente e todos os outros negros estavam proibidos de entrar nos hotéis, restaurantes e clubes exclusivos do poder estrangeiro. Os ocupantes não se atreveram a restabelecer a escravatura, mas impuseram o trabalho forçado nas obras públicas. E mataram muito. Não foi fácil apagar os focos de resistência. O chefe guerrilheiro, Charlemagne Péralte, cruxificado contra uma porta, foi exibido, como aviso, na praça pública.
A missão civilizadora terminou em 1934. Os ocupantes retiraram-se deixando em seu lugar uma Guarda Nacional, fabricada por eles, para exterminar qualquer possível assomo de democracia. Fizeram o mesmo na Nicarágua e na Repúlica Dominicana. Algum tempo depois Duvalier foi haitiano de Somoza e Trujillo.
E assim, de ditadura em ditadura, de promessa em traição, foram-se somando as desventuras e os anos.
Aristide, o padre rebelde, chegou à prsidência em 1991. Durou poucos meses. O governo dos Estados Unidos ajudou a derrubá-lo, levou-o, submeteu-o a tratamento e uma vez reciclado devolveu-o, nos braços dos marines, à presidência. E de novo ajudou a derrubá-lo, neste ano de 2004, e de novo houve mortandade. E de novo voltaram os marines, que regressam sempre, como a gripe.
Porém os peritos internacionais são muito mais devastadores que as tropas invasoras. País sumbetido às ordens do Banco Mundial e do Fundo Monetário, o Haití obedecia às suas ordens sem tugir. Pagaram-lhe negando-lhe o pão e o sal. Congelaram-lhe os créditos, apesar de ter desmantelado o Estado e ter liquidado todas as taxas aduaneiras e subsídios que protegiam a indústria nacional. Os agricultores de arroz, que eram a maioria converteram-se em mendigos ou balseros. Muitos foram e continuam a ir parar ao fundo do mar das Caraíbas, porém esses náufragos não são cubanos e raras vezes aparecem nos diários.
Agora o Haití importa todo o arroz dos Estados Unidos, de onde os peritos internacionais, que são gente bastante distraída, se esqueceram de proibir as taxas aduaneiras e os subsídios que protegem a produção nacional.
Na fronteira onde termina a República Dominicana e começa o Haití, há um grande cartaz que avisa: O mau passo.
Do outro lado está o inferno negro. Sangue e fome, miséria, peste.
Nesse inferno tão temido, todos são escultores. Os haitianos têm o costume de recolher latas e ferros velhos e com antiga mestria, recortando e martelando, as suas mãos criam as maravilhas que se oferecem nos mercados populares.
O Haití é um país atirado ao vasadouro, por eterno castigo da sua dignidade. Ali jaz como se fosse sucata. À espera das mãos da sua gente.

O Bolsa família de Dilma


Uma das mais importantes decisões do governo Dilma Rousseff está prestes a se concretizar e poucas pessoas estão sabendo. Até o fim de maio, depois de meses de estudos e reuniões (que contaram com a participação ativa da presidenta), o Programa Brasil sem Miséria deverá ser lançado.
A meta é ambiciosa: de agora até 2014, acabar com a miséria absoluta no Brasil, mudando radicalmente a vida de 16,2 milhões de pessoas, sua população-alvo. Em nossa história, nenhum governo havia se colocado em um desafio desse porte.
Pena que algo tão relevante fique em segundo plano nas discussões políticas e nas atenções da mídia. Obcecados com o tema do “retorno da inflação”, ninguém se interessa por outra coisa. Ficamos presos à velha agenda: “Gastos públicos descontrolados”, “fatores de instabilidade” e “limites ao crescimento”.
Enquanto isso, um programa totalmente novo está em gestação. Se der certo, o Brasil sem Miséria vai ajudar a resolver um problema que sempre consideramos insolúvel e revolucionar a nossa sociedade.
É algo que Dilma anunciou na campanha como um de seus principais compromissos, mas que passou quase despercebido. No meio de tantas coisas sem pé nem cabeça que estavam sendo prometidas, é até compreensível que isso tivesse acontecido.
Depois da eleição, uma das tarefas nas quais ela mais se empenhou foi na finalização do programa. A versão que será em breve anunciada tem sua marca pessoal.
Aliás, na hora de escolher o slogan do governo, ela optou pela frase “País Rico É País sem Pobreza”, no lugar do que Lula preferia, “Brasil: um País de Todos”. Ou seja, o novo programa é bem mais que apenas outro na área social.
A ideia é simples de enunciar, mas a concretização é complicada. Como disseram suas responsáveis diretas, a ministra do Desenvolvimento Social e a secretária extraordinária para a Erradicação da Pobreza, em entrevista recente, a premissa do programa é que, para erradicar a miséria, é preciso dirigir aos segmentos mais vulneráveis da população ações que assegurem: 1. A complementação de renda. 2. A ampliação do acesso a serviços sociais básicos. 3. A melhora da “inclusão produtiva”.
Como se pode ver, é muito mais que o Bolsa Família, mas dele decorre. Sem a experiência adquirida nos últimos anos, seria impensável um programa como esse, que exige integração de vários órgãos do governo federal, articulação com estados e municípios e capacidade de administrar ações em grande escala. Além disso, é mais complexo, pois implica desenhar soluções específicas para cada segmento, comunidade ou até família, em vez de lhes destinar um benefício padronizado, por mais relevante que seja.
Com ele, tomara desapareçam duas coisas aborrecidas de nosso debate político. De um lado, a reivindicação de paternidade do Bolsa Família que Fernando Henrique e algumas lideranças tucanas repetem a toda hora. De outro, as opiniões preconceituosas contra programas do gênero, típicas de certas classes médias, para quem transferir renda é uma esperteza que subordina beneficiários e perpetua a pobreza. Daí a dizer que Lula é produto do Bolsa Família é um passo.
O curioso na pendência a respeito de quem inventou o Bolsa Família é que o Bolsa Escola, criado no governo FHC, tem sua origem em algo que nasceu dentro de uma administração petista, a do Distrito Federal, quando Cristovam Buarque foi governador. O que foi implantado em Campinas à época em que o tucano Magalhães Teixeira era prefeito tinha pouco a ver com desempenho ou frequência- -escolar, pré-requisitos do Bolsa Escola.
Discussões como essa perdem sentido ante o novo. Onde estaria seu DNA peessedebista se o Bolsa Escola era algo tão mais limitado e menor? Como insistir no discurso do “Fui eu que fiz?”
Aos críticos do maquiavelismo petista, o Brasil sem Miséria responde com sua concepção inovadora e disposição de fazer. Quem levou o Bolsa Família a ser o que é tem crédito para se propor um desafio dessa envergadura.
Mas o importante mesmo é a perspectiva que se abre de que a miséria seja enfrentada para valer. Essa é uma dívida que o País precisa pagar.